Pelas Janelas da YMCA – Crónica de uma Viagem que Ninguém Esquecerá
- António Malveiro

- 20 de out.
- 8 min de leitura
O autocarro e o mundo inteiro lá dentro
Há autocarros que transportam pessoas e há autocarros que transportam histórias. O da YMCA Setúbal, naquele fim de primavera, fazia as duas coisas ao mesmo tempo — e com grande barulho.
As mochilas iam empilhadas, os lanches trocados antes do primeiro quilómetro e o motorista já rezava para que o sistema de ar-condicionado sobrevivesse à algazarra juvenil que o esperava. Era o tipo de viagem em que a excitação é tanta que ninguém percebe se vai para o interior ou para o outro lado da galáxia.
Os monitores sorriam com a paciência de santos em treino. Os rapazes faziam trocadilhos duvidosos.As raparigas trocavam olhares que diziam mais do que os professores de Filosofia conseguem explicar em três aulas. E no meio de tudo isso estava ela — a Inês.
A Inês não precisava de apresentações. Aliás, ela própria as dispensava: bastava aparecer para que o universo se reorganizasse à sua volta. Era a espécie de pessoa que ria antes de contar a piada e que não deixava o silêncio aproximar-se nem cinco segundos. Quem a visse acharia que a vida lhe corria bem. Quem a conhecesse melhor perceberia que o riso era a maneira que ela encontrara de a vida não correr mal.
E foi exatamente nesse autocarro, carregado de sonhos, telemóveis e sandes de fiambre, que ela conheceu o Tiago — e, sem querer, aprendeu uma daquelas lições que a YMCA adora ensinar sem precisar de manual.
A menina do riso fácil
A Inês ria de tudo.Do sol demasiado brilhante, do nome do motorista (“Sr. Álvaro, que parecia saído de uma banda desenhada antiga”), do David a cantar fora de tom, e até de si própria. Ria porque podia, ria porque o silêncio a assustava.
Os colegas adoravam-na. Havia nela uma confiança contagiante e uma energia que enchia o espaço como música num recreio. Mas por trás da gargalhada constante, havia um ligeiro tremor invisível — a sensação de que, se parasse, o mundo podia esquecer-se dela.
O pai vivia entre aeroportos e reuniões. A mãe achava que “a Inês já era muito crescida”.E, no fundo, o riso era o abrigo dela. Era uma muralha feita de piadas, filtros de Instagram e frases rápidas que impediam qualquer um de se aproximar demasiado.
Quando subiu para o autocarro da YMCA naquela manhã, ocupou o lugar do meio — o trono simbólico de quem manda sem dizer que manda. Atrás dela, o grupo habitual: a Marta, fiel escudeira das piadas; o David, sempre pronto a rir no momento certo; e o João, especialista em acrescentar “coisas ainda mais engraçadas” (geralmente não eram).
Foi então que o Tiago apareceu.
O rapaz era novo. Não conhecia ninguém. Tinha aquele ar tranquilo e meio distraído de quem observa o mundo como quem o descobre pela primeira vez. O cabelo escuro caía-lhe para o lado e os olhos — demasiado atentos — pareciam ver mais do que deviam.
A Inês reparou logo nele. Reparou e não soube o que sentir. Talvez curiosidade. Talvez desconforto. Talvez apenas vontade de o pôr no “seu lugar” — o de quem chega tarde a um grupo onde todos já têm papéis definidos.
— Olha o novo — disse ela, alto o suficiente para o grupo ouvir. — Parece que veio da viagem de finalistas errada.
O grupo riu. O Tiago tentou sorrir, mas foi um sorriso de quem aceita a piada porque não quer parecer sem sentido de humor. E assim começou a viagem.Com um riso que soava a leveza — mas trazia peso.
O rapaz que falava com os olhos
O Tiago era um daqueles rapazes difíceis de ler — e não porque fosse misterioso, mas porque raramente falava de si. Vinha de uma escola pequena, numa aldeia perto de Palmela. Filho único, habituado a observar em vez de competir. E tinha o terrível hábito de ser educado — o que, entre adolescentes, é um convite ao desastre.
Nos primeiros quilómetros, ficou em silêncio. Observava o campo a mudar de cor, as nuvens a correr, e deixava-se embalar pelo som das conversas. Mas o silêncio, para quem não está acostumado, soa a arrogância. E a Inês não tolerava arrogância em território dela.
— Então, Tiago, estás a contar as árvores? — atirou ela, com o tom doce de quem esconde o veneno.
O grupo riu outra vez. Não porque fosse muito engraçado, mas porque a Inês tinha essa autoridade invisível — a de quem dita o que é aceitável rir.O Tiago apenas baixou o olhar e respondeu:
— Gosto de ver o caminho.
Foi uma resposta tão simples que desarmou metade do autocarro. Mas a Inês não podia permitir-se perder a liderança — então riu ainda mais. Era o seu escudo.
Nos dias seguintes, o padrão manteve-se.As piadas multiplicavam-se com a leveza das borboletas — e a pontaria de pedras lançadas à distância. A Inês ria, os outros riam, o Tiago calava-se. E, silenciosamente, uma pequena distância crescia entre o riso e o respeito.
O caminho e as pequenas crueldades
A estrada, o sol e as pequenas crueldades
O autocarro da YMCA continuava estrada fora, desfilando por entre campos e oliveiras como um navio cheio de ruído em mar verde. O motorista já aprendera a ignorar o coro adolescente: uma mistura de gargalhadas, batucadas nas cadeiras e um “Despacito” desafinado que parecia não ter fim.
A Inês reinava. A cada curva, inventava uma nova piada, uma nova “tarefa” para os colegas, uma nova forma de garantir que o mundo girava à volta dela. Havia qualquer coisa de encantador na energia dela — e qualquer coisa de perigoso também. Mark Twain, se lá estivesse, teria dito: “Era um tipo de menina que podia acender uma fogueira com o riso e depois queixar-se do calor.”
O Tiago, sentado algumas filas à frente, tentava fingir que não ouvia. Mas é difícil fingir quando o alvo é o teu nome.
— Ó Tiago, quantas árvores contaste até agora? — dizia ela, com um sorriso travesso.— Já chegaste à milésima? Queres que te empreste a calculadora?
O grupo ria. E o riso tem esse dom de ser contagioso, mesmo quando não é justo.
Durante o almoço, no parque de merendas, o Tiago ficou para trás. Enquanto os outros partilhavam snacks e selfies, ele ficou sentado à sombra, a comer devagar, com a calma de quem já percebeu que ninguém repararia. Mas a monitora Joana reparou — e Joana era do tipo de pessoa que via tudo. Não disse nada, só observou. Esperou pelo momento certo.
A arte de mandar e o talento de se esconder
O campo da YMCA ficava num vale rodeado de pinheiros. Tinha um campo de futebol, uma piscina pequena e um pavilhão que cheirava a madeira e sabão azul. Era o tipo de lugar onde se aprende a ser livre — e onde se descobre que liberdade também implica não magoar os outros.
A Inês, claro, tornou-se rapidamente a “líder natural” do grupo. Organizava, decidia, distribuía tarefas. Com ela não havia indecisões — apenas decretos.
Quando chegou a hora do jogo da ponte — um desafio cooperativo em que o grupo tinha de atravessar um “rio imaginário” com tábuas e cordas — a Inês assumiu o comando com entusiasmo militar.
— Malta, sigam as minhas instruções! — gritou, empolgada. — Ninguém se mexe sem eu dizer!
O Tiago tentou sugerir que talvez fosse melhor começar de outro lado.
— Se puserem as tábuas ao contrário, aguentam melhor o peso — disse ele, calmo.
A Inês olhou-o com aquele meio sorriso afiado.
— Claro, engenheiro! Queres também o capacete e o diploma?
Risos. Mais risos. E, por um instante, o som ecoou pelo vale como uma gargalhada coletiva da natureza.
O jogo terminou com a equipa da Inês a cair à “água”.Metade do grupo riu, a outra metade suspirou. A Inês fingiu que nada se passava, mas algo dentro dela — uma coisa pequenina e incómoda — começou a mexer.
Foi nessa tarde que a monitora Joana se aproximou.Com aquele jeito calmo de quem não precisa de autoridade para ser ouvida, sentou-se ao lado dela no banco de madeira.
— Sabes, Inês… há risos que juntam e risos que separam.
— Eu estava só a brincar, Joana.
— Eu sei. Mas às vezes, sem querermos, as nossas brincadeiras dizem mais sobre nós do que sobre os outros.
A Inês não respondeu. Olhou para os ténis, fez um sorriso envergonhado e desviou o olhar.Lá ao fundo, o Tiago ajudava a arrumar o material, em silêncio. Não parecia zangado. Parecia… cansado.
Nessa noite, deitada no beliche de cima, a Inês ouviu as amigas rir e fazer planos para o dia seguinte. Mas ela ficou quieta. E pela primeira vez, em muito tempo, o silêncio não pareceu o inimigo — parecia uma visita que vinha dizer-lhe alguma coisa importante.
A manhã do perdão
O dia começou diferente
No dia seguinte, o sol apareceu preguiçoso, mas decidido. O ar cheirava a pão quente e relva molhada, e o campo parecia ainda meio adormecido. A Inês acordou antes do despertador — coisa rara — e ficou ali, deitada, a olhar para o teto de madeira. Não sabia bem porquê, mas sentia um peso leve, um incómodo tranquilo. O tipo de coisa que acontece quando uma pessoa começa a perceber que fez algo errado, mas ainda não sabe bem como consertar.
Desceu do beliche, calçou os ténis e foi até ao refeitório. O Tiago estava lá, sozinho, com uma caneca de leite e uma fatia de pão. Ela parou à porta. Durante dois segundos pensou em voltar para trás. Mas dois segundos depois decidiu que não.
— Posso sentar-me? — perguntou, num tom que misturava coragem e vergonha. Ele olhou-a, meio surpreendido.
— Claro.
Ficaram em silêncio durante um tempo que parecia uma eternidade. Depois ela disse, devagar:
— Às vezes eu exagero. Não sei porquê… mas faço-o.
— É, às vezes as pessoas fazem — respondeu ele, com serenidade quase adulta.
— Eu não queria magoar-te.
— Eu sei.
E só isso bastou. Não precisou de abraços nem promessas. Naquele “eu sei” estava tudo: perdão, compreensão e talvez uma amizade nova a nascer.
O caminho de volta
A viagem de regresso foi mais calma. O sol batia nas janelas e o autocarro seguia embalado entre canções, cabeças encostadas e risadas que, desta vez, soavam diferentes — mais leves, menos afiadas.
A Inês e o Tiago acabaram sentados perto. Ela contou-lhe histórias da escola, ele falou-lhe das árvores que gostava de desenhar. O grupo, curioso, observava-os de longe, mas sem comentários. Havia qualquer coisa no ar que pedia respeito — um tipo de paz difícil de explicar.
O motorista, que já vira de tudo em viagens de jovens, comentou com a monitora Joana:
— É bonito, sabe? Eles aprendem sozinhos.
— É o segredo da YMCA — respondeu ela, com um sorriso. — A YMCA só dá o cenário. O resto, a vida ensina.
Epílogo – O que se vê das janelas da YMCA
O autocarro desceu as colinas e a cidade de Setúbal apareceu ao longe, com o brilho do mar e o barulho do costume.As casas, os carros, as pessoas apressadas — tudo parecia igual, e no entanto, algo tinha mudado.
A Inês não ria tão alto. O Tiago já não evitava o olhar dos outros. E a estrada, vista pelas janelas da YMCA, parecia agora uma professora paciente: ensina sem dar lições, mostra sem apontar.
Houve quem dissesse, nos dias seguintes, que “a Inês estava diferente”. Talvez fosse verdade. Talvez tivesse descoberto que liderar não é mandar, é cuidar. E que o riso, quando é verdadeiro, não precisa de plateia.
O Tiago, por sua vez, percebeu que o silêncio também pode ter voz — e que, às vezes, basta dizê-la a quem tem coragem de ouvir.
O motorista garantiu que nunca vira um grupo tão quieto numa viagem de regresso. Mas a verdade é que não estavam calados — estavam a pensar. E pensar, em adolescentes, é quase um milagre.
Moral (com o humor que a vida merece)
Na YMCA, há quem ache que o objetivo dos campos é fazer exercício, aprender inglês ou montar tendas sem perder os parafusos. Mas quem olha com atenção percebe: o verdadeiro treino é outro.
É o treino da empatia.Do “espera aí, talvez eu tenha sido injusto”.Do “desculpa, não era isso que eu queria dizer”.E do “anda, senta-te aqui ao meu lado”.
Porque, no fundo, a vida é uma longa viagem de autocarro — cheia de curvas, risos e histórias mal contadas. Uns vão a cantar, outros a dormir, alguns a pensar se trouxeram a almofada certa. Mas se aprendermos a rir com os outros e não dos outros, talvez o caminho pareça mais curto.
E, quem sabe, um dia, quando alguém perguntar o que se vê das janelas da YMCA, a resposta seja simples: “Vê-se o mundo. E um bocadinho de nós a crescer.”





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